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Ferida aberta

Neusa Soliz29 de maio de 2003

Dez anos se passaram desde o incêndio em que morreram cinco crianças e moças turcas em Solingen. Desde então a cidade conhecida por sua cutelaria já não é mais a mesma.

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Casa em chamas em Solingen: o mais grave atentado contra estrangeirosFoto: AP

Nada resta da antiga casa da família Genc. O que o fogo não consumiu, naquele 29 de maio de 1993, depois foi derrubado. Hoje, ao lado de uma lápide e de uma placa referindo-se ao atentado, cinco castanheiras plantadas no terreno relembram as vítimas: Hatice Genc (18), Gülüstan Öztürk (12), Hülya Genc (9) e Saime Genc (4), que morreram queimadas e asfixiadas. Gürsün Ince (27) morreu ao saltar do segundo andar.

A espiral da violência contra estrangeiros, que vinha se intensificando desde 1990, atingiu seu triste apogeu naquele dia em que Solingen se tornou o símbolo do mal e da xenofobia, da fracassada integração de alemães e estrangeiros. O que todos se perguntavam era "como foi possível que isso acontecesse?"

O dia que mudou a cidade

"O 29 de maio de 1993 mudou notoriamente Solingen", admite o secretário de assuntos sociais da cidade e presidente da Liga em Prol da Tolerância e Coragem Civil, Günter Smentek. "Até então nós pensávamos que Solingen se destacava em todo o mundo por sua fábrica de cutelaria. Agora, temos de reconhecer que ela se tornou conhecida por um acontecimento tão triste", diz Smentek, que considera o atentado uma "cicatriz aberta" de Solingen.

O mal morava logo ao lado, oculto sob uma fachada de normalidade pequeno-burguesa. Os quatro autores do atentado - na época de 16 a 23 anos - eram todos da cidade, onde nenhuma atividade juvenil de extrema-direita tinha saltado à vista. "Nós sempre tivemos uma boa relação para com os estrangeiros. Ninguém esperava por isso, é como se o atentado tivesse surgido do nada", expõe Norbert Schmelzer, da associação "SOS Racismo".

A vida continua, com cicatrizes

O mais surpreendente é que a família Genc continua morando em Solingen. Mevlüde Genc, que perdeu duas filhas, duas netas e uma sobrinha, despertou a admiração dos alemães por sua fortaleza, sua capacidade de reconciliação e de perdoar, o que lhe valeu também uma condecoração oficial. Esquecer, ninguém esquece, mas ... a vida continua.

Embore dinheiro algum pague as vidas e os sofrimentos, o que sua família recebeu do seguro e de doações deu para construir uma nova casa e ela não pensa deixar a cidade. Seu filho Bekir, que saiu gravemente ferido do incêndio, constituiu uma família e sua esposa está esperando o segundo filho. "Isso nos dá muita alegria, pois já havíamos nos despedido dele, já havíamos aberto a sua cova, por assim dizer. Mas Deus nos deu-o de volta e que agora surja uma nova vida, isso atenua a nossa dor", diz sua mãe. Na época com 15 anos, Bekir teve que submeter-se a 30 operações e ainda lhe restam algumas pela frente, sem contar as cicatrizes que ficarão para sempre.

Quando a família construiu a nova casa, mandou instalar câmaras de vídeo, temendo novos atentados. Altas grades de metal protegem o terreno. Nesse meio tempo, o portão de entrada já não está chaveado. Muitas autoridades de então agora tornaram-se amigos e aparecem para tomar um chá, o ex-prefeito e um ex-secretário entre outros.

Os criminosos e o julgamento

Demonstration nach Brandanschlag in Solingen
Bandeiras da Turquia em manifestação contra a extrema-direita em Solingen, em 29/05/1993Foto: AP

Quanto aos autores do atentado, Markus Gartmann (23) era o único adulto na época. Condenado a 15 anos de prisão, ainda cumpre pena. Os demais, entre 16 e 20 anos, foram condenados por cumplicidade a dez anos, a pena máxima aplicável a menores de 21 anos. Christian Bucholz foi libertado após cumprir sete anos. Voltou para a casa dos pais e se diz inocente, pois nunca confessou. Em um processo civil, os quatro foram condenados a pagar uma volumosa indenização a Bekir e à família Genc.

O julgamento, em que foram ouvidas 285 testemunhas, atraiu as atenções do país. Apesar de claros indícios e da confissão do principal acusado (que depois a negou), o processo foi marcado por uma série de panes nas investigações. Assim, à polícia só ocorreu procurar vestígios de fogo no corpo e nas roupas dos acusados seis semanas após o crime. Peritos misturaram provas de escombros no mesmo vidro e criou-se muita confusão em torno do momento exato em que teriam atado fogo.

Os advogados de defesa, por sua vez, de tudo fizeram para que a sentença contra seus mandantes parecesse ditada pela razão de Estado e a pressão da opinião pública, que clamava por justiça. Os juízes, porém, se ativerem aos fatos e não se deixaram impressionar por essas tentativas.

Aprendendo a lição

O que se pode fazer para que nunca mais aconteça algo semelhante? Em Solingen foram fundados uma série de grupos, que em 2000 se uniram na Liga em Prol da Tolerância e Coragem Civil. "Nós queremos continuar trabalhando com crianças e jovens e evitar atitudes racistas", diz Smentek.

E a cidade de 164 mil habitantes parece ter êxito com seu programa, a medir pelas estatísticas. Em matéria de crimes de motivação de extrema-direita, ela ocupa o último lugar do país. "Esse é um sinal de que nosso trabalho não foi em vão", diz o político.